Documentário rondoniense:
filmes, realizadores e contextos de produção
Juliano José de Araújo*
Este trabalho parte de uma pesquisa em fase inicial sobre a produção audiovisual de não-ficção da Amazônia Ocidental, especificamente dos realizadores de Rondônia[1] Nosso recorte compreende cerca de 60 documentários [2] (curtas e médias-metragens) feitos a partir de 1997, período marcado pela retomada do cinema nacional e pelo lançamento do longa-metragem O cineasta da selva, do amazonense Aurélio Michiles, que recebeu diversos prêmios e, de certa forma, deu grande visibilidade à produção da região amazônica.
São documentários dos seguintes realizadores: Alexis Bastos; Beto Bertagna; Carlos Levy; do casal Fernanda Kopanakis e Jurandir Costa; do casal Lídio Sohn e Pilar de Zayas Bernanos; Joesér Alvarez; e Simone Norberto. Trata-se, em nossa opinião, de um conjunto de realizadores representativo, tendo em vista que possuem uma produção significativa em Rondônia e revelam, de certa forma, uma atuação constante no campo do audiovisual no período delimitado para a pesquisa.
Apresentamos neste texto um panorama dos documentários que constituem nosso corpus, alguns aspectos das trajetórias dos realizadores e dos contextos de produção de seus filmes com a proposta de fazer uma reflexão sobre algumas das linhas de força da produção audiovisual de não-ficção rondoniense, suas especificidades, contornos e variantes. Vejamos, agora, quem são esses realizadores, o que e como têm produzido na região.
Seis documentários do realizador Alexis Bastos fazem parte de nossa pesquisa. São os filmes: Irerua, a festa das tabocas (2001); Guaporé, terra das águas (2002); Produto de índio (2005); Mapimaí, a festa da criação do mundo segundo o povo Paiter (2005); Góv Akêe (2007); e O que beira a beira do rio Madeira (2007).
Todos os documentários de Bastos foram realizados sob a chancela do Centro de Estudos da Cultura e do Meio Ambiente da Amazônia, instituição mais conhecida pela sigla Rioterra. Criada em 1999, essa Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, atua na área de elaboração de instrumentos de gestão territorial, geração de renda alternativa e estruturação de cadeias produtivas, valorização cultural e fortalecimento social de agricultores familiares e populações tradicionais, temáticas fortemente presentes em seus documentários.
Os filmes de Alexis Bastos foram realizados em conjunto com as ações e projetos da OSCIP. Entendemos que, embora isso iniba um trabalho de cunho mais autoral do realizador, é inegável a importância dessa produção audiovisual de não-ficção, uma vez que revelam em suas narrativas elementos do engajamento pessoal do realizador à frente da instituição, sem contar sua atuação como geógrafo, tendo também realizado mestrado e doutorado nessa área, fato que faz com ele conheça de perto a realidade das comunidades tradicionais do estado.
Em termos estilísticos[3] , os documentários de Bastos seguem, basicamente, o modo expositivo com imagens em estilo observativo, entrevistas e, sobretudo, uma forte presença do comentário em voz over que oscila, dependendo do filme, entre um tom mais objetivo, lembrando reportagens de televisão, e um caráter mais subjetivo.
Do realizador Beto Bertagna, são seis documentários que integram nosso corpus: Sete estrelas, catirina: fragmentos de um folclore (1997); A ferrovia do diabo: desafio no inferno verde (1997); A bailarina da praça (1998); O Brasil que começa no rio (2005); Divino 2005 fé e tradição no Guaporé (2005, com Luiz Brito); Danna Merril, um fotógrafo no inferno verde (2006)[4] . Os filmes de Bertagna revelam uma preocupação com a cultura, a história e a memória de Rondônia, tanto é que o realizador chegou a desempenhar a função de superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Rondônia por vários anos.
Em relação às condições de realização, Beto obteve recursos do governo federal, notadamente de editais para apoio à produção de curtas-metragens, como o Programa Petrobras Cinema, de uma parceria do Ministério da Cultura com a Fundação Cultural do Estado de Rondônia, ocorrida em 1997, e que resultou em um prêmio estadual, ou ainda do DOCTV, do qual o realizador participou da segunda edição.
Do ponto de vista estético, seus documentários revelam o emprego do comentário em voz over, de entrevistas, imagens em estilo observativo, de material de arquivo etc., mostrando que o realizador recorre à procedimentos estilísticos de diferentes tradições documentárias. É importante destacarmos que Beto Bertagna – que desde 2013 não reside mais em Rondônia – desempenhou um importante papel no cenário do audiovisual rondoniense, na medida em que foi um dos grandes incentivadores à produção local. Em 2017, inclusive, ele foi homenageado na 15ª edição do Cineamazônia, Festival Latinoamericano de Cinema Ambiental, realizado em Porto Velho, capital de Rondônia.
Vale a pena observamos também que Beto integrou às equipes de seus filmes vários jovens realizadores que, posteriormente, começaram a se dedicar aos seus próprios projetos audiovisuais, como é o caso de Carlos Levy, Joesér Alvarez e Jurandir Costa, justamente outros três realizadores que integram nossa pesquisa.
Três documentários de Carlos Levy estão presentes em nosso corpus, cinco documentários de Jurandir Costa e mais três filmes dirigidos por eles junto com Fernanda Kopanakis, esposa de Jurandir. Há ainda mais dois documentários dirigidos por Fernanda e Jurandir. Esses três realizadores têm sua atuação no campo do audiovisual de não-ficção associada aos festivais de cinema que coordenam em Rondônia.
Jurandir e Fernanda são os responsáveis pelo já citado Cineamazônia, realizado todos os anos na capital rondoniense desde 2002 e que se constitui em uma referência na região Norte. Levy é o organizador do Curta Amazônia, festival também realizado em Porto Velho e que começou em 2009. Antes de partir para a organização do Curta Amazônia, Levy organizou lado de Fernanda e Jurandir as primeiras edições do Cineamazônia.
Nesse contexto, alguns dos filmes desses realizadores apresentam um certo aspecto institucional, visto, por exemplo, em O circo do cinema (2009), Cinema no meio do mundo (2009) e Uma Só América – um caminho é feito de muitos caminhos (2009), todos co-dirigidos por Costa, Levy e Kopanakis, sendo, portanto, realizações ligadas ao festival de cinema[5] .
Essa característica não se estende, evidentemente, à toda produção deles, caso do documentário Quilombagem (2007), realizado por Fernanda e Jurandir no âmbito da terceira edição do DOCTV e que revela um certo grau de experimentação com a linguagem documentária.
Já os filmes de Carlos Levy, como Duelo na fronteira (2008) e Parque Corumbiara (2008), trabalham com entrevistas e depoimentos, imagens em estilo observativo, comentário em voz over, sendo que Levy viabilizou suas produções com recursos próprios, de apoios locais e do Programa Petrobras Cinema.
Vejamos, agora, a realizadora Simone Norberto. Doze filmes seus fazem parte da pesquisa. Além disso, ela preside o CineOca, um dos cineclubes pioneiros de Porto Velho, fundado em 2005 e que mantém uma programação ativa na capital rondoniense até hoje. É também produtora da Mostra Cinema e Direitos Humanos no Mundo, realizada anualmente em Porto Velho desde 2012.
Tendo trabalhado como jornalista da Rede Amazônica de Televisão, afiliada da Rebe Globo em Rondônia, Simone aproveitou, de certa forma, essa estrutura para fazer boa parte de seus documentários, em uma espécie de desdobramento de reportagens produzidas para a televisão. É o que permitiu a realização dos documentários Forte Príncipe da Beira (1999), Cacau – a semente dos deuses (2000), Aventura no Vale do Apertado (2004), Aventura nas Corredeiras de Machadinho (2005), Irerua, festa Parintintim (2007) e Missão Rondon (2007).
Entretanto, os filmes da documentarista não se restringem à esse universo, abarcando também a relação com a arte, caso de Repositório (2003) e Curso (2006), classificados como experimentais. Tendo deixado a emissora de televisão e atuando na assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Rondônia, Simone fez o documentário Bizarrus (2010), que mostra a trajetória do trabalho de encenação de uma peça de teatro de mesmo nome, tendo sido baseada nas histórias pessoais dos próprios presos-atores. Teve a produção feita pela Coordenadoria de Comunicação do Tribunal de Justiça.
Para finalizar, vejamos o caso de mais três realizadores cujos trabalhos se aproximam bastante, notadamente por poderem ser pensados pela relação entre os campos da arte e do documentário. Falamos de Joesér Alvarez e do casal Lídio Sohn e Pilar de Zayas Bernanos. Vinte e uma produções imagéticas de Joéser e cinco de Lídio e Pilar compõem nossa pesquisa.
Os realizadores Lídio Sohn [6] e Pilar de Zayas Bernanos destacam-se pelos procedimentos de criação e métodos de trabalho que empregam em suas produções audiovisuais. Antes de irem para a Amazônia, os dois já tinham um forte contato com o campo das artes, tendo feito diversos trabalhos de desenho, de gravura em metal, literários, musicais e teatrais, além de atuarem como produtores culturais. A partir de 1985, começaram a trabalhar com o vídeo, realizando uma série de trabalhos audiovisuais, seja do gênero documentário, ficção ou experimental.
Seus filmes Os requeiros (1998) e Paisagem ocre (2005), ambos realizados com recursos do governo federal, ilustram bem o queremos dizer: o primeiro, recorrendo à entrevistas, depoimentos, imagens no estilo observativo e material de arquivo da imprensa local, revela um elaborado trabalho de montagem de imagens e sons; já o segundo consiste em um trabalho de experimentação da linguagem não-verbal, uma espécie de manifesto audiovisual em defesa da natureza, devido à destruição causada pelo garimpo na região.
Essa interseção entre documentário e arte faz-se presente também na obra de Joéser Alvarez que pode, em nossa opinião, ser pensado como um artista multimídia, à medida em que realizou trabalhos no campo do cinema, seja documental ou ficcional, performance, pintura, poesia etc.
Alvarez tem realizado seus filmes notadamente com financiamentos próprios, concentrando suas produções no âmbito do Coletivo Madeirista. Seu trabalho chegou a ter repercussão internacional com a obra Inventário das sombras (2007), um registro documental e artístico do projeto de intervenção urbana nascido na Amazônia e que ganhou o prêmio para artes digitais da Unesco em 2007. É importante notarmos que o realizador prioriza a veiculação de seus trabalhos na internet.
Joesér destacou-se, em 2014, com o projeto “Rotação de culturas”, que teve financiamento da Rede Nacional Funarte Artes Visuais – 10ª edição. Essa atividade promoveu um intercâmbio entre artistas das regiões Norte e Sul do Brasil com a realização de dois encontros, sendo um em Belém, no Pará, e outro em Curitiba, no Paraná, reunindo um artista/pesquisador de cada um dos dez estados dessas regiões. A proposta dos encontros foi debater a produção artística em cada estado e realizar também uma mostra com filmes dessas localidades.
Acreditamos que pudemos, ainda que de forma inicial e panorâmica, apontar algumas das peculiaridades da produção audiovisual de Rondônia que se faz fora do eixo dos grandes centros, como Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Temos pela frente mais dois anos de execução da presente pesquisa, período em que buscaremos dar continuidade à realização de entrevistas com os cineastas, revisão e ampliação do corpus fílmico, além de um embate direto com os documentários no sentido de pensá-los no que podem acrescentar ao debate social contemporâneo sobre a(s) representação(ões) de temas caros à Amazônia.
Em relação à exibição, praticamente todos esses filmes circularam por festivais da região Norte e de outros estados brasileiros. Infelizmente, Rondônia não tem uma emissora de TV pública que, de certa forma, poderia dar vazão à essa produção e, inclusive, incentivá-la. Apesar das dificuldades enfrentadas pelos realizadores rondonienses, um dado positivo que queremos mencionar foi o lançamento, em 2016, do edital do prêmio Lídio Sohn, que destinou recursos estaduais para a realização de quatro curtas-metragens, todos atualmente em fase de produção[7] . Assim, constatamos que o governo de Rondônia começa, ainda que de forma tímida, a delinear uma política de fomento e incentivo ao audiovisual no estado.
Referências
FESTCINEMAZÔNIA. Festival de cinema e vídeo ambiental da Amazônia. 7ª ed. Porto Velho, RO: catálogo, 2009.
HOLANDA, Karla. Documentário nordestino: mapeamento, história e análise. São Paulo: Annablume, 2008.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Trad. Mônica Saddy Martins. 6ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2016.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008.
[1] Trata-se do projeto de pesquisa “Práticas e imagens documentais na cultura audiovisual da Amazônia Ocidental”, aprovado na Chamada Universal FAPERO nº 003/2015 da Fundação de Amparo ao Desenvolvimento das Ações Científicas e Tecnológicas e à Pesquisa do Estado de Rondônia (FAPERO).
[2] O corpus está sendo, à medida de desenvolvimento da pesquisa, revisto e ampliado. Com a realização de entrevistas com os documentaristas, pudemos confrontar os dados levantados preliminarmente em catálogos de festivais da região, como o Cineamazônia, realizado em Porto Velho, capital de Rondônia, e o acervo fílmico do Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Amazonas etc. Nesse sentido, estamos descobrindo alguns documentários que não integravam nossa relação inicial de documentários. Assim, queremos deixar claro o processo de construção da presente pesquisa, uma vez que os dados apresentados aqui não são conclusivos. Uma referência importante para a realização de nossa pesquisa sobre o documentarismo rondoniense é o trabalho de Karla Holanda (2008).
[3] As reflexões sobre as questões estilísticas dos documentários que integram nosso corpus apresentadas aqui baseiam-se, notadamente, nas considerações de Bill Nichols (2016) e de Fernão Pessoa Ramos (2008).
[4] Embora tenhamos delimitado como recorte da pesquisa o período a partir de 1997, pretendemos dialogar também com os filmes feitos anteriormente por Beto Bertagna, notadamente no final dos anos 1980 e início de 1990, considerando o papel que o realizador desempenhou na região e a inexistência de estudos sobre o documentarismo rondoniense.
[5] Conforme informações do catálogo da 7ª edição do Cinemazônia, realizada em 2009, os três documentários foram exibidos antes da mostra competitiva sob a denominação de “Mostra Fest Cineamazônia Itinerante Integração Latino Americana”.
[6] Lídio Sohn faleceu em 2006. Em 2016, o governo de Rondônia lançou um prêmio de incentivo à produção audiovisual no estado que recebeu o nome do realizador.
[7] Nessa mesma perspectiva, em 2017, foram divulgados pela Superintendência Estadual dos Esportes, da Cultura e do Lazer de Rondônia quatro editais de fomento à cultura e arte, nas áreas de teatro, fotografia, produção musical e literatura.
* Doutor em Multimeios pela UNICAMP com estágio doutoral na Université de Paris X-Nanterre, mestre e graduado em Comunicação pela UNESP. É professor do Departamento de Comunicação Social da UNIR.