A RIQUEZA DA BORRACHA:

FRUTO DA ESCRAVIZAÇÃO

 

 

 

"Domesticar os selvagens ou fazer com que elles nos entendam,o que é a mesma cousa, equivale a fazermos a conquista pacifica de um terrítorio quasi do tamanho da Europa, e mais rico do que ella. Só essa conquista vale milhões; feita ella, porém, não conseguiriamos somente a posse real da maior parte do território do império; conseguiriamos também um milhão de braços aclimados, e os únicos que se prestam ás industrias, que por muitos annos serão as únicas possiveis no interior - as extractivas e pastoris".[1]

 

"A inescrupulosidade que norteou as atividades de uma produção que se baseava na exploração financeira, não conheceu nenhuma fronteira.  Caracterizou-se pela sujeição tanto de Índios quanto de brancos, conduzidos à força aos cauchais e seringais.[2]

 

"...Os seringueiros hipocritamente ocultam as suas intenções e continuam a perseguir os indios; nada poupam, desde que seja necessário ajuntar algumas bolas de borracha ou pranchas de caucho. Atacam o índio como qualquer animal das brenhas: alguns há que demonstram grande surpresa ao ouvirem a reprovação de tais crimes. Estes lhe parecem muito legítimos" [3]

 

Fotos: Dr. Bauler (1908-1911)

A VIDA DOS CHAMADOS  "BARÕES DA BORRACHA"

 

Imagens captadas por volta de 1908-1911 às margens do Rio Madeira, na fronteira entre a Bolívia e o Brasil. Provavelmente, o fotógrafo era um certo Dr. Bauler,Suíço e, felizmente, descreveu a maioria das fotografias no verso.


Há imagens de Villa Bella, Cachuela Esperanza, C. Madeira, C. Mamore, C. Chocolatal, C. Riverao, C. Jirau, C. Teotônio e C. Santo Antonio. Nomes como: Sr. Carlos Meyer (Hamburgo), Sr. Lugones, Sr. Alfredo Ufenast, Mozo Trinitario, Don Fred Arnold, Sra. Hunrek, Sr. Gasser, Sr. Furrer, Sr. Haase, Franzisco Suárez, Oscar Suarez, Estevan Pasema, Don Pedro Juarez.

 

Não se deve esquecer que muitos dos índígenas que coletaram a borracha foram assassinados, violados e flagelados constantemente, sendo presos e forçados à extração da seringa. Em algumas áreas, cerca de 90% da população indígena foi exterminada.

 

Wolfgang Wiggers

Fonte: FLICKR 

 

"O nome genérico de seringueiro tanto se aplica por lá aos proprietários de seringas como aos operários que colhem a cobiçada seiva e a manipulam. Os primeiros são também negociantes e os seus operários são obrigados a vender-lhes toda a borracha que retiram, ao preço do mercado no seringal, e a lhes comprar no armazém todos os gêneros de que precisem para a sua subsistência e vestuário, pelo preço arbitrário que lhes é imposto. Ganham, portanto, na compra e na venda, a torto e a direito, por fas e por nefas.

 

Portanto, não é de admirar que enriqueçam depressa e que os pobres operários, quase todos cearenses e filhos do Rio Grande do Norte, só dificilmente se livram da triste condição de servos da gleba. Sim, porque o trabalho extrativo do Amazonas lembra perfeitamente o feudalismo da Idade Média.." [4]

 

 


 

SERINGUEIROS NA AMAZÔNIA

 

 

Apesar da penetração ao interior da floresta amazônica até meados do século XIX, o surto migratório para a Amazônia teve, efetivamente, início nos anos de 1877-1879. Estima-se que do primeiro ciclo da borracha até 1960, aproximadamente 500.000 nordestinos vieram para Amazônia. A desterritorialização de tantas pessoas foi motivada, principalmente, pelas condições de miséria, conflitos no campo, secas e pelo sonho de ficarem ricos e poder voltar à sua terra para viverem em condições mais digna. No entanto, a realidade foi bem diferente. Os seringalistas não permitiam que os seringueiros desviassem sua atenção do objetivo principal: a extração do látex. Os primeiros se comprometiam em possibilitar o aviamento de gêneros alimentícios, roupas e utensílios necessários para o fabrico e entregá-lhes estradas de seringa em condições de serem exploradas, bem como o apoio na construção de tapiris e defumadores. Entrementes, o seringueiro só poderia descansar um dia na semana e destinar toda a produção de borracha para o patrão que lhe aviou. Diante das dificuldades, meninos e meninas eram despidos de sua inocência e obrigados à responsabilidade da atividade da coleta do látex.[5]

(excerto)

BARRACÕES DE SERINGUEIROS NO RIO JAMARÍ E JARÚ

APONTAMENTOS SOBRE A ECONOMIA DA BORRACHA E A EXPLORAÇÃO DA MÃO DE OBRA INDÍGENA EM RONDÔNIA

 

 

"A migração de nordestinos para o Norte recebeu incentivos estatais, inicialmente, em forma de propaganda e outros atrativos, como passagens e alimentação; posteriormente, a migração passou a ser compulsória. Segundo João Medeiros Filho e Itamar Souza (1984), mesmo aqueles que não desejavam migrar eram obrigados pelo Estado, que se utilizava do monopólio da força. O ápice da política migracional para a Amazônia aconteceu em 1943, com a criação do Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA): no seu primeiro ano de atuação, mais de 60 mil trabalhadores foram enviados para trabalhar nos seringais.
 

Entretanto, mesmo com tamanho deslocamento populacional, a demanda por mão de obra nos seringais não foi suprida. Diante disso, as companhias passaram a pressionar os governos locais para mobilizar e utilizar força de trabalho indígena, provocando o deslocamento de aldeias e mesmo de nações indígenas inteiras para atender à demanda dos seringais. Em Rondônia, como exemplo, podemos citar a migração forçada dos Kanoê, Arikapú e Djeoromitxí.

 

Originalmente, o povo Kanoê habitava a margem esquerda do Rio Pimenta Bueno (RO) e as cabeceiras do Rio Guaporé (RO); estas áreas eram pouco acessíveis até o início do século XX, fazendo com que este grupo étnico vivesse, essencialmente, isolado. Em 1909, a expedição das Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (Comissão Rondon), ao adentrar a região dos Rios Pimenta Bueno e Corumbiara, passou a estabelecer contato com os Kanoê (MALDI, 1984). Em 1943, o coronel Aluísio Pinheiro Ferreira, então governador do Território Federal do Guaporé, determinou o deslocamento dos Kanoê para o Posto Indígena Ricardo Franco (atualmente, P.I. Guaporé). De acordo com as pesquisas de Denise Maldi (1984; 1991), os índios foram transferidos para suprir as baixas dos trabalhadores acometidos por epidemias de sarampo e gripe. O Posto Indígena não contava com infraestrutura para atender aos recém-chegados; sem a possibilidade de formação das roças, coube aos Kanoê trabalhar em tempo integral na produção da borracha em troca de alimentos. Em pouco tempo, contraíram as mesmas moléstias que haviam vitimado os seringueiros; a mortalidade entre os Kanoê foi tão alta a ponto de quase serem extintos.


O ciclo da borracha também deixou marcas na história do povo Arikapú. Originalmente, eles viviam à margem direita do Rio Guaporé (RO), tendo contato regular com os não indígenas desde o fim do século XIX (CASPAR, 1958). Na década de 1920, os Arikapú foram empregados na extração de látex, castanha do Pará e ipeca. Nos “barracões” dos Rios Branco, Colorado, Mekens e Corumbiara, trabalhavam em troca de alimentos, facões e machados de metal. Na década de 1930, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) passou a transferir grupos indígenas Arikapú do sudoeste de Rondônia para colônias agrícolas e seringais na região oeste, na confluência entre os Rios Guaporé e Madeira. Nas colônias, os Arikapú passaram a trabalhar em regime análogo à escravidão (MALDI, 1984). Segundo o etnolinguista Hein van der Voort (2007), muitos tentaram fugir e regressar a suas terras de origem ou para a cidade de Guajará-Mirim, à época capital do Território Federal do Guaporé; porém, quando capturados, eram enviados para trabalhos forçados no Posto Indígena Ricardo Franco.
 

Assim como os Arikapú e os Kanoê, o povo Djeoromitxí também sofreu o processo de migração forçada para colônias de trabalho. Segundo Franz Caspar (1975), até a década de 1950, os Djeoromitxí habitavam a margem esquerda do Rio Branco, próximo ao atual município de Alta Floresta d‟Oeste (RO). Maldi (1991) estima que, antes do contato com os não indígenas, sua população alcançava os milhares de indivíduos que habitavam grandes malocas em formato de colmeia; sua subsistência se baseava em coleta de frutas e insetos, pesca, caça e agricultura de roçado. No primeiro quartel do século XX, surgiram às margens dos Rios Branco, Mekens, Colorado e Corumbiara barracões de “caucho” (borracha). Nos barracões, os não índios passaram a atrair grupos indígenas, ofertando-lhes machados e facões de metal; o povo Djeoromitxí, assim como outras etnias, estabeleceu uma relação de troca nos barracões. Por volta de 1920, os Djeoromitxí passam a ser empregados no seringal Paulo Saldanha, na cabeceira do Rio Branco; em 1934, este seringal foi foco irradiador de uma epidemia de sarampo, que se alastrou por toda região. Fugindo da epidemia, os Djeoromitxí desceram o Rio Branco até o seringal São Luis, onde se encontravam, também, muitos Aruá, Makuráp e Wayurú. Na medida em que o seringal São Luis apresentava “excedente de mão de obra”, o Estado passou a recrutar e encaminhar os Djeoromitxí – bem como outras etnias – para colônias de trabalho (CASPAR, 1975; MALDI, 1991).
 

Diante do contato e do histórico de exploração e diáspora, os Kanoê, Arikapú e Djeoromitxí passaram a viver nas T.I. Rio Branco e T.I. Rio Guaporé. Apesar de morarem em territórios demarcados e homologados – logo, em tese, áreas protegidas –, esses grupos ainda estão à mercê do desenvolvimento predatório. A ação de madeireiros, pescadores comerciais e mineradores de cascalho e o uso de pesticidas nas lavouras das fazendas vizinhas coloca em risco a existência desses povos; mais recentemente os projetos hidrelétricos, como as várias Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) construídas na bacia do Rio Branco, vêm causando profundos impactos nessas comunidades.

...

Originalmente, os Kaxarari estavam na cabeceira do Igarapé Curequeté, afluente da margem direita do Rio Ituxy. Os dados mais atuais do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena, gerenciado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SIASI/SESAI), são de 2014 – e informam que a população dos Kaxarari é de 350 indivíduos; no século XIX, eram estimados em, aproximadamente, dois mil índios (AQUINO, 1985).
A formação dos barracões gerou impactos profundos na etnia Kaxarari, a ponto de ser o elemento norteador da memória desse povo. A partir do contato com os seringalistas, os Kaxarari narram a sua história, contada a partir de três momentos, ou tempos, como eles próprios definem. São eles o “tempo das correrias”, o “tempo do cativeiro” e o “tempo dos direitos”.
O “tempo das correrias” data do início do século XX, quando seringalistas brasileiros e peruanos promoveram expedições – as chamadas “correrias” – com intenção de expropriar as terras dos índios, ricas em seringa e castanha. Essas expedições foram marcadas pela extrema
violência, segundo Cristina WOLLFF (1999); seus objetivos principais eram o assassinato dos homens e a captura das meninas, mulheres e crianças pequenas, as quais eram vendidas entre os seringueiros e comerciantes locais.


Por volta de 1940, após o processo de etnocídio e a expropriação das terras dos Kaxarari, os seringalistas procuraram “amansar” os sobreviventes para utilizá-los como força de trabalho; iniciava-se o “tempo do cativeiro”. Os Kaxarari passaram a ser incorporados ao sistema de barracão, permanecendo atrelados a uma dívida impagável no armazém. O “tempo do cativeiro” estende-se até fins da década de 1960, momento em que coincidem a decadência dos seringais e a construção do trecho da BR-364 que liga Porto Velho (RO) a Rio Branco (AC); a estrada passa nas proximidades das aldeias Kaxarari, o que lhes permitiu o deslocamento das cabeceiras dos Rios Curequeté e Ituxy para a margem esquerda do Rio Azul, área de pouca influência dos seringalistas. A rodovia também possibilitou aos Kaxarari a comercialização de seus produtos com pequenos intermediadores, chamados de “marreteiros da estrada”. Entretanto, é preciso destacar que a relação comercial entre os Kaxarari e os “marreteiros” continuou desigual, uma vez que os comerciantes superfaturavam mercadorias industrializadas e desvalorizavam a produção dos indígenas (SANTOS, 2002).


Somente em meados da década de 1970, com a instalação de uma “Ajudância” da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) no Acre, os Kaxarari passaram a ter ciência de seus direitos; iniciava-se o “tempo dos direitos”. Em 1978, foram feitos os primeiros estudos topográficos para demarcar as terras dos Kaxarari, provocando uma longa disputa política e judicial – que se arrastou até 1991, quando são finalmente demarcadas e homologadas as T.I. do povo Kaxarari (FUNAI, 1997).
Como podemos constatar, de modo a atender à demanda por látex, os seringais estabeleceram barracões como forma de intermediar a exploração sistemática da força de trabalho indígena, a exemplo dos Kaxarari e de outras etnias. Entretanto, segundo Edinéia Izidoro, as relações entre as diversas etnias e os seringalistas foram pautadas não apenas pelo conflito, mas também pela dependência. A expansão dos seringais impôs aos povos indígenas uma nova forma de vida, notadamente marcada por trabalho semiescravo e doenças – mas, também, por novos hábitos, uma vez que, após o contato, passaram a ter novas necessidades, como o uso de remédios e o consumo de alimentos até então desconhecidos, como arroz, café e açúcar (IZIDORO, 2006).

 

A compreensão das relações que sucedem aos contatos interétnicos é bastante complexa. Muitas vezes, a figura do colonizador/conquistador é retratada de forma dúbia: não raro, um grupo social ou comunidade emite representações conflitantes de determinado indivíduo ou de outro grupo social. Indivíduos que ora são representados como “devastadores”, “assassinos” e “exploradores” também são concebidos como “protetores”, “benfeitores” ou mesmo “paternos”. Como exemplo, destacamos a relação entre o seringalista conhecido como “Barros” e a etnia Arara.
Edilson Medeiros Filho (2003) informa que, possivelmente, os primeiros contatos dos Arara com os não índios ocorreram por meio de garimpeiros e missionários, no fim do século XIX – mas foram intensificados com a expansão das Linhas Telegráficas e o desenvolvimento da extração de seringa. Em meados da década de 1940, na região do atual município do Ji-paraná (RO), surgiram os primeiros seringais e barracões próximos às aldeias dos Arara; neste contexto, destaca-se a figura de “Barros”.


Segundo a bibliografia consultada (MEDEIROS FILHO, 2003; IZIDORO, 2006; NEVES, 2006), coube ao seringalista “Barros” a primazia no processo de aliciamento da força de trabalho dos Arara. Para compreender o sucesso dessa empreitada, ressaltam-se dois elementos; o primeiro relaciona-se ao fascínio despertado nos índios pelos produtos industrializados – devido à novidade ou à praticidade trazida às tarefas do dia a dia, a exemplo de facões, enxadas e foices, utilizados na lida das roças; o segundo elemento tem natureza política: o período em que os seringais se estabeleceram na região coincidiu com os conflitos interétnicos entre os povos Arara, Gavião e os Uruku, ou Urubu – os últimos liquidados pelos ataques dos Arara e dos seringalistas. Os conflitos geraram um cenário favorável aos seringalistas, que souberam potencializar as disputas, enfraquecendo as resistências das etnias e ampliando os elos de dependência dos indígenas com os barracões. Em poucos anos, a maioria dos índios da região de Ji-Paraná havia se tornado força de trabalho da cadeia produtiva da borracha.


Dessa forma, os Arara foram distribuídos para trabalhar em diversos seringais da região; a maioria jamais retornou à sua aldeia. Muitas crianças foram “adotadas” pelas famílias dos seringalistas, como forma de “aculturação”; o resultado desse processo é a relação de conflito e dependência desenvolvida entre os Arara e os seringalistas. Na memória de alguns Arara, “Barros”, ainda hoje, é considerado um “protetor”, tanto dos outros seringalistas quanto das tradicionais etnias inimigas.

O histórico da relação entre os Arara e os seringalistas promoveu um clima de desconfiança entre os Arara e os Gavião que ultrapassou o tempo dos seringais. Contemporaneamente, persiste o mal-estar entre os anciãos Arara e Gavião; contudo, as novas gerações – especialmente aqueles que seguiram carreira no magistério indígena – têm se esforçado para estabelecer um laço de fraternidade entre as duas etnias, vital para a resistência indígena diante do atual estágio das frentes de expansão capitalistas, as quais ameaçam a integridade física e social desses povos.
A formação dos barracões também é um componente fundamental para a formação da memória étnica dos povos indígenas. Conforme Michel Wieviorka (2004), as memórias das tragédias, muitas vezes, transformam-se em memórias de afirmação; nessa operação, o coletivo converte as lembranças e o reconhecimento de seus sofrimentos em elementos de integração. Nesse sentido, podemos destacar a importância da memória do episódio conhecido como “Barracão Queimado” para o povo Negarotê.


Na década de 1940, no Vale do Juruena, território dos Nambiquara5, surgiram seringais próximos às matas dos Rios Piolho, Cabixi, Sabão e Galera. O barracão central, responsável pelo abastecimento de todos os seringais da região, chegou a empregar 200 trabalhadores, sobretudo os indígenas Negarotê (PRICE, 1975). Em entrevista, o ancião Sebastião Negarotê relata que, por volta da década de 1960, após o final do expediente, mulheres indígenas Negarotê retornaram às aldeias com os canecos de alumínio utilizados para coletar o látex na sangria das árvores. Isso foi considerado um agravo pelo gerente do barracão, chamado Geraldo; como forma de puni-las pela “indisciplina”, no dia seguinte, quando as indígenas retornaram ao trabalho no barracão, o gerente e outros seringueiros promoveram o estupro coletivo das mulheres; até mesmo crianças foram sexualmente abusadas. Como desdobramento do ocorrido, os seringueiros saquearam o armazém do barracão; diante do cenário caótico, Geraldo ateou fogo ao barracão e responsabilizou os Negarotê. Em seguida e, possivelmente, temendo a represália dos Negarotê, Geraldo organizou uma expedição e atacou as aldeias, executando todos os indígenas que encontrou. O episódio transforma-se em lugar da memória do povo Negarotê; fundou-se, no local do acontecimento, a Aldeia Barracão Queimado.


Os Negarotê fazem parte dos Nambiquara da Serra do Norte, que são compostos, ainda, pelos grupos Sabanê, Tawanté, Lacondê, Idalamerê, Mamaindê, Latundê e Nesu (Manduca).
Destacamos e agradecemos o auxílio do acadêmico Mauyrio Negarotê na tradução da entrevista.

No final da década de 1960, o preço da borracha passou por forte desvalorização; como forma de compensar os seringalistas, o governo do estado de Mato Grosso concedeu-lhes a titulação das terras dos seringais – muitas dessas terras estavam dentro do território dos índios Nambiquara. Com a posse do título, os seringalistas venderam as terras aos pecuaristas, iniciando um novo ciclo de luta pelo reconhecimento das terras e dos direitos dos povos Nambiquara. A demarcação das Terras Indígenas Nambiquara ocorreu somente em 1990, por meio do Decreto nº 98.814."
[6]

(excerto)

 

 

POSTAIS ANTIGOS DO BOOM DA BORRACHA

AS BARRACAS DO MADEIRA

 

"Por causa desse intenso comércio fluvial, os bolivianos conheciam bem o Madeira e o médio Amazonas quando começaram a explorar a borracha. Em 1864, José Santos Mercado fundou o primeiro assentamento boliviano de extração de borracha, ou barraca, na zona da cachuela, na confluência dos rios Yata e Mamoré, e começou a exportar borracha em 1865. Em 1866, quatro irmãos de Santa Cruz chamados José Manuel, Antonio, Querubín e Antenor Vásquez abriram uma segunda zona de extração construindo duas barracas em um afluente do rio Beni. Pouco tempo depois, Santos Mercado transferiu suas operações a jusante do Mamoré para o rio Madeira: a Bolívia havia herdado a reivindicação espanhola, do Tratado de San Ildefonso de 1777 com Portugal, para grande parte da margem esquerda do Madeira, e os siringueros bolivianos (seringueiros ) logo se mudou para essa área.[7] 

 

MOJOS - REMADORES BOLIVIANOS

COLEÇÃO DE ALBERT FRISCH - 1865

"Esses barqueiros índios Beni remavam os rios Mamoré, lténez e Beni e seus afluentes, e os rios Madeira e Amazonas até Serpa, Manaus e Belém. Pelo menos um barqueiro chegou a viajar até o rio Orinoco.

...A parte mais cansativa de uma expedição era contornar as dezoito corredeiras e cachoeiras Madeira-Mamoré, tarefa que só terminou com a conclusão da Ferrovia Madeira-Mamoré no litoral brasileiro em 1912. Essa viagem pelas cachoeiras poderia levar três semanas a jusante e nove semanas a montante. Nas cachoeiras maiores de Teotônio, Girau, Ribeirão e Bananeiras, a carga tinha que ser descarregada e os barcos arrastados até mil jardas em rolos de toras. Os barcos tinham que viajar em grupos de pelo menos três, porque a tripulação de um único barco não poderia fornecer força muscular suficiente para transportar seu barco sozinho. Tal transporte poderia levar dois ou três dias. Em corredeiras menores, os barcos podiam ser deixados na água e puxados rio acima por cordas da margem do rio...Mesmo onde não havia corredeiras, a jornada de trabalho de um barqueiro era longa e difícil. A tripulação de Franz Keller se levantava ao amanhecer, remava por três a quatro horas e depois parava para o café da manhã e duas horas de descanso. Eles remavam mais duas ou três horas, descansavam novamente e depois remavam até a noite.

 

...Os remadores vestiam chapéus de palha de abas largas e camisas compridas (casca de árvore) para o dia de trabalho e vestiam camietas de algodão quando foi dormir; ambos os tipos de tecido eram usados ​​nas antigas cidades missionárias. Os mojos continuaram a usar suas distintas camisas artesanais e chapéus de palha no rio Madeira, nas ruas de Manaus e no baixo Amazonas."[8]

 

"O captiveiro do negro do sul do imperio é uma vida de paraiso em relação ao dos infelizes indios no alto Madeira, onde, por infelicidade, pessoalmente observei
e no Purús, onde me informaram ser o mesmo.


O escravo do sul, mesmo em serviço do mais descurado senhor, tem as suas tres refeiçoes diarias: come carne; quando doente, tem medico, medicamentos e diéta; tem o fruto de seu trabalho aos domingos e dias santificados, e tem roupa para cobrir a sua nudez, e mesmo para preservail-o dos rigores da inverno.


E sabe V. Ex., Sr. redactor, de que modo é tratado o indio no alto Madeira?


Decerto vou horrorisal-o, mas é a verdade:


Em certa época do anno, seguem os negociantes(nome original!) para a Bolivia, onde, no Beni, no Mamoré e outros rios, contratam á força, 200 e mais indios,geralmente Mojos e Baures, vestem-os com uma camisola a que chamam typoi e começam a longa e perigosa jornada atravez das cachoeiras do Madeira, e durante o trajecto alimentam o infeliz escravisado unicamente com xibê, isto é, dão ao indio farinha de mandioca amarella, que a tomam feita em papa com agua fria.


Aos seringueiros (proprietarios de arvores da borracha) moradores e estabelecidos pelas margens do rio, vão elles os cedendo aos bandos, mediante certo numero
de pesos plata, a titulo de despezas de viagem.


O novo proprietario contrata o indio por 5 ou 10 pesos, 10$ ou 20$ mensaes, que, na phrase popular, lhes são pagos em tres prestações: tarde, mal e nunca.


O seringueiro tem sempre uma casa de negocio,sortida especialmente de caixas de musica, gaitas, chitas,lenços encarnados, garrafas d' agua de Florida, que, na
falta absoluta de bebidas a1coolicas, bebem-n'a como se fôra aguardente.


O indio ahi se fornece d' essas inutilidades até o limite de seus honorarios; isto é, tendo comprado uma calça, uma camisa e um chapéo, está eIle esgotado por muito tempo.
 

Na época da borracha, sai o infeliz pela manha para o serviço, convenientemente nutrido com o xibê e alguma caça que pôde apanhar, e até á I hora da tarde tem recolhido para o proprietario leite de seringa correspondente a 10, 12 e até I5 kilos de borracha, que, vendida de 4$ a 4$800 o kilo, dá de 30$ a 70$ por dia.


Se adoece a ponto de lhe ser impossivel absolutamente trabalhar, se lhe fornece uma caixa de pilulas do Dr. Carper, e n'isso se resume todo o tratamento.


Se commette algum delicto (o maior de todos é não poder trabalhar), é amarrado e barbaramente açoutado.


O infeliz com as carnes retalhadas e ainda sangrando, vai ao senhor agradecer por estas textuaes palavras:


Vengo le dar las gracias, senor! Que Di'os se lo pague. Mañana voy a trabajar! 


Tudo isso é simplesmente horrivel, mas é a verdade!
N' esse gosto trabalha o infeliz muitos annos, e se um dia quer passar-se para o seringal de outro individuo, é preciso que este pague ao primeiro proprietário a
divida (!!!) do indio, nunca menor de 300$ ou 400$, e não poucas vezes attingindo a contos de réis.


Note-se que a divida está sempre na razão do trabalho do indio. Se este é optimo trabalhador, a dívida é enorme; se ao contrario é imprestavel, invalido ou doente,
o abandonam até."
[9]

(excerto)

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

[1] MAGALHÃES, Couto. O Selvagem. Typ da Reforma,Rio de Janeiro, 1876, p. VIII;
 

[2]  MEIRELES, Denise Maldi.

Populações Indígenas e a Ocupação Histórica de Rondônia.

Monografia final - Especialização Mato Grosso: História e Historiografia.

Universidade Federal de Mato Grosso - Deptº· de História, 1984, p.62.

 

[3] HORTA BARBOSA, Nicolau Bueno.

Exploração e levantamento dos rios Anari e Machadinho.

CLTE-MT-AM. Publ 48. HORTON, Donald. 1945, P.40.

 

[4]Norte do Brasil: através do Amazonas, do Pará e do Maranhão /
pelos Drs. Victor Godinho, Adolpho Lindenberg. – Brasília : Senado
Federal, Conselho Editorial, 2011. p.40;

 

[5]SILVA, Antônio Carlos Galvão e SILVA,Josué da Costa.SERINGUEIROS NA AMAZÔNIA 
Anais do II Colóquio Nacional do NEER,UFPR, 2007;

Seringueiros na Amazônia

 

[6] TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros

Apontamentos Sobre a Economia da Borracha e a Exploração da Mão de Obra Indígena em Rondônia.

Revista NãdutY V. 5 N. 7,2017

 

[7]VAN HALEN, Gary.

Agência indígena na Amazônia: os Mojos na Bolívia liberal e do ciclo da borracha, 1842-1932.

Imprensa da Universidade do Arizona, 2013, p.67,78 e 80;

 

[8] Idem,p.78 e 80;


[9] Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré (Brasil).

Do Rio de Janeiro ao Amazonas e Alto Madeira: itinerario e trabalhos

da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré:

impressões de viagem por um dos membros da mesma comissão.

Rio de Janeiro.Typ. a Vapor de Soares & Niemeyer, 1885.p.140 a 142;