DAS ARTES VISUAIS EM RONDÔNIA

Joesér Alvarez

 

 

 

Segundo a obra “Artes Plásticas no Contexto Regional” (CREMA,2001), único livro publicado que aborda a questão das artes visuais propriamente ditas em Rondônia, dentro ainda, de um contexto restrito às artes plásticas, essas, teriam nascido com as primeiras gravuras realizadas pelos engenheiros alemães José e Francisco Keller (1863), incumbidos pelo Ministério da Agricultura de levantamentos topográficos precedendo a 1ª tentativa de construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré [1].

 

Já nessa época, e durante o tempo em que as empresas inglesas e norteamericanas se fizeram presentes no local, a técnica fotográfica, inda que não de forma artística, foi constantemente utilizada de modo documental, sendo essas fotografias atualmente empregadas na reconstituição de cenários e mesmo apropriações diversas em design, publicidade e propaganda.

 

Mas, antes que o trem da história continue a andar, uma pausa pra refletir: não podemos incorrer no erro do apagamento da herança artística anterior, reduzindo-a um recorte de índole industrial, e com isso, anular a questão identitária visual regional,como se aqui, nenhuma referência existisse antes da EFMM, ao passo que, estudos arqueológicos apontam para uma cultura autóctone consolidada, cuja herança iconográfica pode ser datada de três a sete mil anos[2].

 

Nesse ponto, a insistência em linkar tal informação ao Projeto Rotação de Culturas, dá-se no sentido de desvelamento e afirmação de uma identidade cultural ligada inerentemente às populações indígenas que aqui habitavam, as quais, sob o pretexto do vazio demográfico, foram dizimadas por uma cultura alienígena, cultura essa que continua seu ritmo de anulação imagética, mas já não única, e conhece o eco da manifestação das minorias que hoje, a duras penas, buscam resgatar laços históricos, sociais e culturais com seu lugar de pertença.

Assim, essa tentativa de percurso procura pelos lugares da memória devidamente documentados na história da época, tentando equilibrar no presente, essa herança memorial passada, vestigial, enquanto instrumento de informação para construção de conhecimento no sentido de alimentar futuras práticas e pesquisas artísticas no campo das artes visuais.

 

 

Antes da Mad Maria

 

As técnicas de gravura, desenho e aquarela parecem ter dominado a iconografia do período pós-colonial, com a utilização comum por naturalistas e desenhistas que acompanhavam as viagens científicas e/ou de demarcação de limites pela região amazônica.

 

No livro “Viagem ao Redor do Brasil” (1866) do Cel. Médico João Severiano da Fonseca, militar e um dos primeiros viajantes, encontram-se publicadas algumas das primeiras gravuras de Taunay, que retratam aspectos geográficos do território atual, na época, uma zona dividida entre os estados do Mato Grosso e do Amazonas, com ilustrações das cachoerias do rio Madeira, que hoje já não existem mais, graças ao projeto hidrelétrico de Santo Antônio e Jirau [3].

 

Retrocedendo um pouco mais no tempo, temos a visita de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783 e 1792) em sua “Viagem Filosófica”, retratando alguns aspectos regionais da então Capitania do Mato Grosso, conhecida no meio militar como Mundurucânia, em virtude das etnias do tronco tupi que habitavam a região e eram indistintamente rotuladas como mundurucus.É dessa época algumas das únicas gravuras que retratam a etnia Mura[4].

 

Voltando ainda no tempo, tem-se o enclave arquitetônico do Forte Principe da Beira (1772-1778), suas cornijas, decoração e estilo português, cujo correspondente quase idêntico na fortaleza de São José do Macapá, construção e projeto, nos dois casos devida ao engenheiro engenheiro militar genovês Domingos Sambucetti. O dito Forte, depois de seis anos de contrução e inaugurado a peso de ouro, jamais disparou um tiro contra o inimigo espanhol, motivo pelo qual havia sido construído, inaugurando um ciclo de elefantes brancos, de cujo estigma, até o momento ainda não nos livramos [5].

 

Um desses projetos, que infelizmente, foi vendido à opinião pública local como a salvação energética do país, o complexo hidrelétrico Jirau/Santo Antônio, apesar de todas as mazelas trazidas pela exploração energética e pelo alto custo social, tem uma face extremamente positiva, que foi e está sendo o resgate e a preservação de artefatos líticos,cerâmicos e pictográficos oriundos da calha do Madeira, os quais, talvez, sem o aporte financeiro e tecnológico suportado por esses projetos, permaneceriam ocultos em sua riqueza plástica e iconográfica[6].

 

Com isso, uma cerâmica extremamente delicada e policrômica, tem surgido à luz das últimas escavações pelos arqueólogos, bem como, o mapeamento de petróglifos através de scanner 3D. Tais achados parecem ser a redescoberta de uma pré-história colonial ainda por ser escrita, mas cujos primeiros passos apontam um rico acervo iconográfico, que pode inclusive mudar certos conceitos da própria história de ocupação da região, evidenciando a necessidade de uma memória não apenas historiográfica mas também imagética, que dê conta dessas questões, para as futuras gerações.

 

Ora, mencionar tais fatos, revela uma identidade cultural não totalmente apreendida pelo público, sendo essa, relegada ao descaso pelo poder público, prática comum dos governantes locais, cujo sistema baseia-se essencialmente no tradicional extrativismo de recursos financeiros, renovado de quatro em quatro anos, sem investimento algum na formação de uma identidade local.

Tocar esses aspectos originários, mais que revivê-los, torna-os necessários para a construção dessa identidade, para sua visibilidade, atualmente presa ao passado apenas pelos trilhos de uma ferrovia, e cujo espólio, apesar de tombado, continua abandonado, evidenciando o descaso com o patrimônio público ad infinitum.

 

Tornam-se necessário tais prolegômenos, para uma primeira caminhada em torno desse resgate identitário, cuja cultura imagética, necessita urgentemente de conservação, catalogação, e acima de tudo, respeito.

 

 

Das artes plásticas no contexto regional

 

O primeiro levantamento feito pela artista Regina Crema em relação às artes plásticas de Rondônia através do livro “Artes Plásticas no Contexto Regional”[7], evidencia alguns de seus principais nomes, fases e estilos, a partir das migrações promovidas durante a construção da EFMM, bem como, a iconografia e os dados biográficos levantados, servindo em muito, coapesar de suas limitações, como base para futuras pesquisas acadêmicas e historiográficas.

 

Na obra, a princípio, destaca-se o papel da arte em sua tradição religiosa, mencionando o trabalho do padre argentino radicado em Porto Velho, Angelo Natalio Cerri (1935) e os afrescos pintados na Catedral da capital. Um de seus aprendizes, e, dos primeiros pintores paisagistas regionais o artista autodidata Afonso Ligório, ganha relevância pictórica e escultórica, transitando entre o sagrado católico e o das religiões de matriz africana, destacando-se suas pinturas murais e esculturas em tamanho natural (1960-1970).

 

José Fona, de Santarém, pertencente a uma tradicional família de artistas plásticos paraenses, tem lugar garantido também, como um dos antigos mestres das artes visuais rondonianas, em seu estilo naif, possuindo características ímpares, sempre ligadas à temática regional amazônica, tendo deixado seu legado pictórico mais importante na Igreja de São Carlos, povoado situado às margens do Rio Madeira, bem como, em algumas raras pinturas murais espalhadas pela capital.

 

Há uma clara predominância de domínio das técnicas pictóricas por parte de alguns artistas migrantes, como Raimundo Paraguassu, amazonense também radicado em Porto Velho, e um dos primeiros pintores abstratos que chegou a realizar exposições fora de Rondônia na década de 60.

 

Dos filhos da terra, não há como deixar de mencionar a influência da obra de Paulinho Rodrigues, Rita Queiróz, João Zoghbi, Geraldo Cruz, Pedro Furtado, dentre outros, e suas contribuições para a renovação das linguagens e técnicas na abordagem da temática regional, na promoção de exposições, bem como, de reinvindicações às iniciativas independentes no circuito artístico local, com uma atuação marcante entre as décadas de 80/90.

 

 

Do circuito autônomo

 

O circuito independente nas artes visuais em Rondônia atualmente, apresenta-se bem marcado e pode contar-se nos dedos as iniciativas tanto individuais quanto coletivas, cujas ações predominantemente dão-se na Capital, Porto Velho, com raros eventos relativos e/ou equivalentes no interior do Estado.No que tange a coletivos de artistas ou iniciativas artísticas que definem-se enquanto grupos autônomos, raros são os grupos que mantém por muito tempo uma trajetória atuante na cena local.

 

Um dos grupos do interior do Estado, pioneiro em video arte, video clip, poesia visual, arte digital e performance em Rondônia, era composto pela dupla Lidio Sohn e Pilar de Zayas Bernandos, artistas radicados na cidade de Ariquemes, com uma forte atuação na cena contemporânea, e um dos primeiros grupos a destacarem-se no cenário artístico nacional, extrapolando as fronteiras não só geográficas, como também da experimentação poética[8].

 

Em Porto Velho, o grupo informal de gravura com artistas locais, capitaneado pela artista gaúcha Ângela Schiling, tem logrado destaque internacional pela seleção de alguns trabalhos em bienais de gravura, apresentando perspectivas emergentes e atuando com destaque qualitativo na cena contemporânea local e nacional[9].

 

O Fotoclube de Rondônia, outra iniciativa recente e independente, mediada pelas redes sociais, possui um grupo de discussão no Facebook, uma galeria no Flickr e partilha de dicas e intercâmbio de imagens entre seus membros e outros fotoclubes, realizando alguns varais fotográficos na capital[10], promovendo dias de campo, tendo realizado até o momento, algumas exposições fotográficas em grande formato, nas cidades de Porto Velho e Manaus.

 

Dentre outros artistas que destacam-se na cena independente pela persistência ainda autônoma, podemos citar também: Raissa Dourado na área da videoarte; Assis Chateaubriant, pintor e músico (o único artista autodeclarado que sobrevive apenas de arte em Rondônia);  Ronaldo Nina, Sérgio Cruz e Luiz Brito, fotografia; Regina Crema, mosaico e gravura; Déa Melo e Botôto, performance; Flávio Dutka, pintura e desenho; Margot Paiva e Vrena, pintura e instalação; Maria Miranda, arte-educação e Mirtes Rufino, escultura;

 

 

Do Madeirismo

 

Não há como falar da questão artística em Rondônia atualmente, sem mencionar a influência do Madeirismo, um movimento de inspiração dadaísta surgido na virada do século, talvez o único na amazônia. Um movimento de curta duração (1999-2001) que brotou a partir de discussões estéticas e de forma multidisciplinar, dentro da Universidade Federal de Rondônia e teve algumas de suas primeiras ações com a publicação de uma carta de intenções (manifesto), cuja criação literária marcou um divisor de àguas na cultura regional.[11]

 

Em função da práxis centrípeta de alguns de seus membros, o movimento acabou dissolvendo-se naturalmente, dando origem a partir de 2003, ao Coletivo Madeirista [12], uma proposta de ação coletiva mais abrangente e um dos grupos com mais tempo de atuação no circuito independente de artes visuais em Rondônia, cujos trabalhos transitam entre a videoarte, artivismo, poesia visual, interferências urbanas, performances, tendo, dentre outras atividades, um Ponto de Cultura, cujo público prioritário é a comunidade Surda.

 

O grupo Arperformance Surda[13], uma iniciativa independente que surgiu como fruto do trabalho desse Ponto de Cultura, em parceria com a Associação de Surdos de Porto Velho-ASPVH e a Associação de Professores, Parentes, Amigos e Intérpretes dos Surdos de Rondônia – APPIS/RO (Movimento Surdo), obteve reconhecimento nacional com o Prêmio Arte e Cultura Inclusiva 2011 – Edição Albertina Brasil – “Nada Sobre Nós Sem Nós” 2011.


 

Referências bibliográficas

 

1-CREMA, Maria Regina (org.), Artes Plásticas no Contexto Regional, Faculdade São Lucas,2001.

 

2-Estudo quer provar que ocupação humana data de 7 mil anos, em RO. Disponível em:

http://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2013/02/estudo-quer-provar-que-ocupacao-humana-data-de-7-mil-anos-em-ro.html;

 

3-FONSECA, João Severiano da. 1880, 1881. Viagem ao Redor do Brasil (1875-1878), 2 Volumes. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & C.

 

4-FERREIRA, Alexandre Rodrigues, Viagem Filosófica ao Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1972.

 

5-MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira : Rio Guaporé, século XVIII.1989,Petrópolis, 1989.

 

6-PROJETO ARQUEOLÓGICO PRÉ-HISTÓRICO NO RIO MADEIRA ÁREA DO EMPREENDIMENTO HIDROELÉTRICO DO ALTO RIO MADEIRA – RO, Disponível em: http://marte.museu-goeldi.br/arqueologia/projeto4.html;

 

7-Idem (op.cit);

 

8-HOMENAGEM: Lídio Sohn – Pesquisador Videográfico, Diretor de Arte, Câmera, Músico, Artista Plástico, Vídeo-artista e Produtor Cultural. Disponível em: http://www.sergioramos.com.br/ant.asp?page=4&intervalo=20;

 

9-Artistas de Rondônia são selecionados para Bienal na Europa. Disponível em: http://www.secel.ro.gov.br/?p=207;

 

10-Fotoclube Rondônia promove hoje Fotovaral com tema Livre, na Praça das Caixas D’água. Disponível em: http://bailadoraandaluza.blogspot.com.br/2011/10/fotovaral-tema-livre-hoje-na-pc-das.html;

 

11-MANIFESTO MADEIRISTA. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/manifesto-madeirista;

 

12-Coletivo Madeirista wins the UNESCO Digital Arts Award 2007. Disponível em http://portal.unesco.org/culture/en/ev.php-URL_ID=33858&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html;

 

13-Conheça os vencedores do Prêmio Arte e Cultura Inclusiva. Disponível em: http://www.midiace.com.br/index.php?conteudo=noticias&cod=443;

 

Belém - Curitiba, 21/03/2014

Projeto Rotação de Culturas [PREMIO REDE/FUNARTE 2013]