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Povos indígenas de Rondônia: rumo aos 518 anos de resistência
Neste canto da Amazônia ocidental chamado de Rondônia, nas décadas de 1930-40 viviam mais de 80 mil indígenas. Somente no médio rio Machado, no coração do estado, o etnólogo Levy Strauss em seu livro Tristes Trópicos, numa descrição densa em expedição descendo o rio Pimenta e adentrando o rio Machado abaixo, narra que se fosse contar quantos indígenas ele encontrou pelas barrancas desses rios calcularia mais de 50 mil, o que ele denominou de Império Kawahib.
Já o Mapa Etno-histórico (de Curt Nimuendaju/IBGE, 2002) traz uma diversidade de povos identificados nesse período – dos quais muitos nem se ouve falar nos dias atuais, como os Parawat, Kepkiriwat –, identificado e datado de 1922. Destacadas em variedades de cores conforme sua localização, permite perceber que o processo migratório internamente era intenso pela diversidade de povos, com destaque para os Kawahiwa no centro do estado e na bacia do baixo Madeira.
A política indigenista do início do século 20, com o marechal Cândido Mariano Rondon, por meio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), era de “incorporar o indígena à sociedade nacional por meio da produção”. Aproveitando-se da abertura da linha telegráfica para conectar as duas cidades de Rondônia, Porto Velho e Guajará-Mirim a Cuiabá, passando por Vila Bela da Santíssima Trindade, Rondon instalou a Colônia Agrícola Rodolfo Mirando na localidade de Vila Velha, atual cidade de Ariquemes. O papel das colônias era de oferecer tratamento em casos de doenças e ensinar aos indígenas um ofício na oficina de marceneiro. Ou seja, os indígenas destribalizados pelo SPI eram trazidos para esse lugar, de onde não mais saíam. Essa colônia funcionou como um espaço de “redução indígena”, um verdadeiro campo de concentração, onde os indígenas morreram por doenças contraídas no contato, já que não dispunham de atendimento médico.
Mas na década de 1960, o que antes era o grande picadão (abertura na floresta permitindo a passagem de carros de boi ou cavalos), por onde passava a linha telegráfica, agora recebe a intervenção dos governos militares e o transformam numa estrada, a rodovia Marechal Rondon, BR-364, estrada de chão por onde caminhões começam a trafegar, principalmente no período de verão amazônico, começando a trazer e levar gentes e contribuindo para consolidar novos povoamentos. Com isso entramos na década de 1970 com grande movimentação de migrantes para essas novas terras, onde viviam milhares de indígenas que agora se deparam com “gente estranha” chegando e ocupando o que antes eram seus territórios. Isso levou Anine Suruí a afirmar tristemente que “a cobra grande passou e as cobrinhas menores foram nascendo rapidamente e muita gente foi entrando e derrubando tudo”. Já na década de 1980 o governo brasileiro asfalta a rodovia BR-364 e constrói a hidrelétrica de Samuel no rio Madeira, para dar suporte aos milhares de migrantes principalmente do Sul e Sudeste, atraídos pela propaganda governamental, que desde a década de 1970 ocupava os informes principalmente na Rádio Nacional de Brasília, no programa A Voz do Brasil, conclamando o povo a vir para Rondônia: “Homens sem terra, para uma terra sem homens”.
Esse cenário de ocupação incentivada pelos governos militares levou a cair uma grande noite sobre os povos indígenas que antes eram livres. Dos mais de 80 mil nesse chão, no início da década de 1980 eram pouco mais de 2 mil indígenas. Um grande genocídio e um etnocídio foi cometido contra esses povos e não há qualquer ação judicial de reparo aos sobreviventes desse grande massacre. Um único caso de julgamento de um genocídio no Brasil, com condenação dos mandantes e executante, ocorreu em Rondônia na década de 1990, no município de Guajará-Mirim, do caso conhecido como “Massacres dos Oro Win”, motivados por garimpo de ouro em território ocupado pelos Oro Win no alto do rio São Luiz, afluente do rio Pacaás Novos, afluente do rio Mamoré.
Atualmente Rondônia conta com 43 terras indígenas, das quais somente vinte são regularizadas e outras 23 ainda não foram identificadas pelo órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai), terras essas reivindicadas por remanescentes de povos que no processo histórico de ocupação tiveram seus territórios invadidos e por conseguinte a perda dos mesmos, bem como dos povos isolados. Habitam essas terras cerca de sessenta povos indígenas já contactados, alguns com poucos membros sobreviventes dos massacres, bem como vivem quinze povos em condição de isoladamente e risco, os conhecidos por “povos isolados”.
Atualmente, conforme dados do Panewa Especial, publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi/RO, 2015), com dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), estima-se uma população de mais de 15 mil indígenas em Rondônia.
Embora a Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, garanta os Direitos dos Povos Indígenas, a luta pela efetivação desses direitos é uma constante na vida desses povos. O que se preconizava como meta do governo brasileiro em efetivar a demarcação das terras indígenas nos próximos cinco anos, ou seja, até 1993 não se concretizou até os dias atuais. Os projetos de emendas constitucionais para violar esses direitos são criados aos montes no Congresso Nacional. A primeira violação à Constituição se deu no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando editou a “portaria do contraditório” n. 1.775/95, facilitando aos interessados nas terras indígenas o barramento dos processos de reconhecimento, demarcação e homologação das terras indígenas.
Nesse mesmo cenário, em Rondônia estava em curso o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro), financiado pelo Banco Mundial, na tentativa de resolver as pendências sociais e ambientais geradas na implantação do Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste), que iniciou e findou na década de 1980 pela metade, deixando um rastro de destruição e morte. Nas premissas do Planafloro estava a garantia de territórios, estudo, proteção e demarcação de terras indígenas e de unidades de conservação. Entretanto, o mesmo governo da época de Valdir Raupp contribuiu para a redução da terra indígena Karipuna, em acordo não assinado com a Funai, em troca de proteção, fiscalização, entre outros, nas terras indígenas Uru Eu Wau Wau e Mequéns, o que não foi cumprido até os dias atuais.
Chegamos em 2003 e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal decide, com apoio de empresas privadas e públicas do setor elétrico, pela construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Esse fato vai nos levar a um novo momento no Estado brasileiro, o da contradição do discurso das empresas “senhoras do destino dos povos do Madeira”, de que estamos em novo tempo, democrático, e que tudo será feito dentro dum processo participativo, de consulta, de respeito aos direitos etc., o que até hoje não aconteceu. O processo migratório acelerado rumo aos canteiros de obras, o processo de negociação/especulação de terras para vender pras “usinas”, o incentivo à industrialização regional, baseada no extrativismo madeireiro/mineral, e a expansão do agronegócio tomam conta do novo cenário.
O saldo desse processo: os povos indígenas das terras Karitiana, Cassupa, Karipuna, Kaxarari, Ribeirão e Laje até os dias de hoje sequer saíram do “pano emergencial” de ações, conforme previsto no cronograma das compensações das empresas responsáveis pelas usinas hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau. As empresas estão concluindo as construções e devem deixar os mesmos em condições piores do que antes.
A terra indígena Karipuna, situada entre as duas hidrelétricas, Santo Antonio e Jirau, onde foi construída uma estrada para facilitar o acesso dos indígenas à aldeia, foi transformada numa rota de esbulho do referido território. Madeireiros, grileiros de terra, traficantes, garimpeiros se aproveitam da ausência e negligência dos órgãos fiscalizadores para tomar conta do território indígena, ameaçando de morte lideranças e apoiadores, conforme denunciado pelo Cimi/RO e liderança no mês de outubro de 2017.
A terra indígena Karitiana que almeja sua ampliação, para garantir território tradicional antigo, que com muita luta conseguiu a criação de um grupo de trabalho da Funai para fazer o processo de estudo e posterior demarcação, viu o sonho ser triturado nas turbinas das hidrelétricas com a ofensiva de deputados e senadores ruralistas rondonienses, que em 2013/2014 pressionaram a Funai pela não conclusão, deixando-os em situação de risco, já que a ocupação voluntária dos mesmos para frear a frente de espoliação desse território foi efetivada, mas ficaram desprotegidos pelo órgão oficial responsável. A pressão de madeireiros, grileiros e garimpeiros é todo dia.
Projetos de novas hidrelétricas na bacia do Madeira (UHE Guajará-Mirim) e na do rio Machado (UHE Tabajara) podem agravar a situação, pois envolvem mais povos indígenas (Oro Aram, Dhajoy, Tenharim, Iterap e Ikolen), e inclusive povos em condição de isolamento e risco.
Na terra indígena Uru Eu Wau Wau, onde em 1995 havia o “acordo não assinado” de desintrusão de invasores, não efetivado no Planafloro, a Funai construiu um posto de vigilância na região de Campo Novo de Rondônia, o qual, no início de 2017, foi invadido por grileiros de terra (com fornecimento de Cadastro Ambiental Rural pela Secretaria de Desenvolvimento Ambiental do Estado), com apoio presencial em reunião gravada no local de representantes políticos do atual governo do estado, entre eles a secretária-adjunta da Secretaria de Estado da Agricultura (Seagri), do governo Confúcio (PMDB), cuja denúncia foi efetivada ao Ministério Público Federal e noticiada pela Associação do Povo Uru Eu Wau Wau e pela Associação Etno Ambiental Kanindé. Entretanto, até agora nenhuma atitude foi tomada pelas autoridades competentes em evitar que se amplie ainda mais a destruição desse território.
Já na terra indígena Sete de Setembro, do povo Paiter Suruí, a situação não é diferente. Os invasores, além de ameaçar lideranças que se opõem ao modelo destruidor, tentaram assassinar no mês de novembro de 2017 um casal indígena. Os acusados do crime são madeireiros que estavam promovendo a derrubada de árvores de castanheira, o que é proibido por lei, mas que encontra na ilegalidade generalizada da atual conjuntura pós-golpe a oportunidade para fazer valer a máxima dos bandidos de que “o crime compensa” quando estes encontram apoio para seus atos em gestores governamentais ou em membros dos legislativos nas esferas estadual e nacional.
Ainda na tentativa de mercantilizar as florestas do estado de Rondônia, a onda dos projetos de sequestro de carbono se materializa, mesmo antes de ter uma lei nacional que oriente esse processo. Está em curso em Rondônia, na tentativa de camuflar os reais objetivos deste, o debate de um projeto de lei denominado “Política Estadual de Governança Climática e Serviços Ambientais (PGSA), em que será criado o Sistema Estadual de Governança Climática e Serviços Ambientais (SGSA), com vistas à implantação de princípios, diretrizes, objetivos, ações e programas previstos nesta lei” (ALE/RO, 2017). Caso seja aprovado, o governo e as empresas mercantilizarão as florestas restantes das terras indígenas e unidades de conservação.
Por fim, convém destacar que a Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Opiroma), que congrega mais de setenta povos, tem feito esforço na tentativa de defender os direitos indígenas. Entretanto, por se oporem aos interesses do governo do estado e de algumas ONGs que apoiam projetos de sequestro de carbono/REDD+ em terras indígenas, enfrentam desafios no processo de organização interna pela influência destes e na externa pela política de “não dar atenção” ao pleito. Resta-lhes buscar o apoio do Ministério Público Federal e de algumas organizações sociais, como o Cimi/RO, Instituto Madeira Vivo/IMV, o Comin da igreja Luterana e da Pastoral Indigenista, para fortalecer a luta e marcar presença em Brasília, no Congresso Nacional e demais órgãos afins na tentativa de garantir direitos mesmo em tempos de golpe.
O próximo governo democrático brasileiro tem a árdua tarefa de fazer valer a Constituição brasileira ou incorrerá no erro de deixar que os povos indígenas cheguem à sua extinção cultural, o que significará um empobrecimento generalizado da nação brasileira.
Os povos indígenas defendem o “bem viver”, e para tanto a garantia do território é condição essencial para isso, o que torna para o capitalismo uma ameaça, porque o “modo de vida de aldeia” é da partilha, do uso racional e não de acumulação. Esse modo de vida com certeza é que permitiu a resistência por mais de 518 anos.
- Iremar Antonio Ferreira é graduado em História/Unir/97 e mestre em Desenvolvimento Regional e Meio ambiente/PGDRS/Unir/09. Atua desde 1988 na defesa e promoção dos direitos dos povos indígenas. Foi membro do Cimi/RO de 1992-1998. Acompanha o movimento indígena de RO desde 1992
ALAINET - Edição 167, 18 dezembro 2017